domingo, 24 de janeiro de 2010

Kafka

Duas horas da manha, uma quinta feira qualquer de agosto do ano de 2009.

Acordo num sobressalto. Maldito pesadelo. Mandíbula dolorida de tanto morder os dentes, camisa encharcada de suor.

Levanto ainda meio assombrado e vou me arrastando para cozinha. Abro a geladeira, agarro o primeiro tuperware cheio de coisas que vejo. Na porta acho um achocolatado pronto. Sento a mesa com meu protótipo de lanche na frente. Ainda relembrando partes de um sonho absurdo noto algo caminhando na pia da cozinha. Paro de mastigar com um misto de nojo e surpresa. Não era o único ser, noite após noite, a rondar o estabelecimento em busca de restos para comer.

Meu primeiro instinto foi assassino, mas estava muito tonto ainda para bolar um plano homicida. Ela para de andar, sobe no beiral da pia e olha para mim. Tomo um gole de chocolate e volto a mastigar. Imóvel, apenas com as antenas balançando, parece não se incomodar com meus movimentos famintos. Ficamos assim, eu comendo e ela balançando as antenas.

Lembrei do inseticida no armário. Era só levantar e pegá-lo, mas não pude. A idéia de eliminar um ser que nada tinha feito de errado me pareceu absurda. Que vida complicada, provavelmente é a criatura mais odiada da face da terra. A única vez que ouvi alguém falar algo de bom dela foi Kafka, e ainda assim com ressalvas. Estava condenada a vagar pelo resto de sua existência se esgueirando pelos cantos, vivendo de restos e fugindo de todos.

Terminei meu lanche, ela continuava lá com suas antenas dançando um balé sonolento. Acendi um cigarro tentando entender o porque daquela situação incomum. Será que aquele ente estava tentando estabelecer algum tipo de comunicação comigo? Ou apenas surpresa pela minha aparição dantesca no meio da madrugada.

Ainda encarando aquele invertebrado comecei a lembrar de alguns problemas rotineiros daquele dia. Pareceram insignificantes diante daquela situação cômica de “contatos imediatos de terceiro grau”. Kafka tinha razão, problemas mesmo eu teria se acordasse com um par de antenas espetadas na testa.

Ainda alternando entre um pensamento filosófico e um bocejo ela se vira, corre e some atrás do fogão. Dei uma risada, apaguei o cigarro e fui dormir.

Na manha seguinte conto o fato a minha esposa antes de ir trabalhar, ela riu e não disse nada.

Espero que ela não tenha passado o dia com uma vassoura na mão rondando a casa na ponta dos pés pensando onde estava com a cabeça quando resolveu casar comigo

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